É o fim do caminho?: Difference between revisions
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<em>É pau, é pedra, é o fim do caminho<br /> | <em>É pau, é pedra, é o fim do caminho<br /> |
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Artigo original do Blog Textos para Reflexão
É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É à noite, é a morte, é o laço, é o anzol
Esses são os versos iniciais de “Águas de Março”, célebre música composta por Tom Jobim no fim dos anos 50. Tom compôs este e diversos outros sucessos enquanto visitava o sítio da família na localidade de Poço Fundo, a 40 minutos de Petrópolis. A beleza da região serrana do Rio de Janeiro parece sem dúvida ter ajudado muito em sua inspiração. A poesia de Jobim fala sobretudo da vida – o vento ventando; uma ave no céu; é a promessa de vida no teu coração – e da morte – é o fim do caminho; é a noite; o fim da ladeira.
Ultimamente a natureza não tem esperado Março para enviar suas águas. Em Janeiro de 2011 a região serrana do Rio registrou a maior tragédia natural de que se tem notícia no estado: as chuvas vieram muito fortes e praticamente todos os morros tiveram deslizamentos de terra, matando centenas de pessoas, soterradas pelas próprias casas – particularmente em Nova Friburgo e Teresópolis. A casa onde Tom Jobim compôs suas canções também foi levada pela enxurrada.
Este desastre natural, entretanto, não se compara ao terremoto que devastou quase completamente Lisboa, a capital de Portugal, em 1755. Em uma época onde a população mundial era muito inferior a atual, estima-se que morreram entre 10 e 100 mil pessoas naquele que é até hoje o terremoto mais letal da história. Até aquela época era muito comum atribuir os desastres naturais a “ira divina”, num tipo de associação de ideias que data da pré-história... Entretanto, o terremoto de 1755 suscitou respostas divergentes dos filósofos iluministas. Gente como Voltaire parece ter se cansado de ficar sempre a mercê da “ira divina”, e tratou de analisar a existência como ela realmente o é – um ciclo de vida e de morte.
Nossa sociedade moderna parece ter enorme dificuldade em lidar com a morte. Tirando as funerárias e as seguradoras, parece que ao capitalismo a morte é um tremendo desperdício: altos funcionários e CEOs que acumularam conhecimento e experiência por décadas e décadas subitamente se tornam incapazes por razão do envelhecimento, se aposentam, e depois simplesmente se despedem de nós. Atores de cinema ou TV, de fama mundial, que trazem renda garantida aos grandes estúdios, subitamente se vão ainda durante as filmagens do próximo blockbuster. Até mesmo aquele economista de renome que sempre consultávamos antes de realizar nossas aplicações na bolsa de valores, ele também se vai, e não sabemos mais a quem consultar.
O capitalismo, entretanto, parece não sentir falta dos informais, das donas de casa, dos lixeiros, dos carpinteiros, dos pedreiros, dos pequenos trabalhadores do campo, enfim, dos pobres. A informação que se perde quando estes se vão não parece de tanta importância para que o giro da roda do dinheiro continue sua constância – mas fato é que todos morrem. Todos podem ser levados pela enxurrada, pelos tremores, pelos acidentes, pela violência e ignorância dos homens, ou simplesmente pelo próprio tempo em que aqui se vive. Sim, pois não há dia em que não estejamos a morrer: todas as nossas células morrem e são substituídas por outras, inúmeras vezes, durante a vida de nosso corpo. Nesse sentido, a própria vida é uma tragédia constante...
Porque então estarrecer-se com a sombra da morte? Se a morte é apenas o último tilintar dos neurônios no cérebro – estes que também morrem e nascem a todo dia – então a morte é apenas um sonho sem sonhos. Morremos então, todo dia, conscientemente – pois sabemos da degeneração celular –, e inconscientemente – quando nos deitamos na cama e sonhamos uma vez mais, até o dia seguinte, até o próximo ciclo do Sol.
Porque então agradecer aos deuses por ter sido poupado de uma tragédia, se toda a tragédia é em si uma tragédia? Por vezes, teria sido melhor não ter sido poupado, ao menos se compreendemos a morte como o fim do caminho. Nas religiões orientais, particularmente no hinduísmo, o aspecto destrutivo de Deus é tão bem compreendido quanto o aspecto criativo. Entende-se, sobretudo, que a existência não é uma história simples, um “era uma vez...”, com início, meio e fim – mas antes um ciclo incomensurável, uma existência cósmica que se estende até as beiradas do infinito, uma história onde falar em início e fim faz tanto sentido quanto falar no nascer e no por do Sol.
Em todo caso, os céticos dificilmente entenderão como pode este povo tão simples, aparentemente tão ignorante, continuar louvando ao Deus do cristianismo mesmo após tamanha tragédia natural. Tragédia natural é ato divino, é coisa da natureza, e da natureza cabe o cuidado de Deus. Se ele poupa alguns e toma outros, porque agradecer, porque se revoltar, porque enfim, acreditar?
É que naqueles que creem, mesmo que seja na sombra da sombra do Deus de todo o Cosmos, reside esta distinta intuição de que nada ocorre ao acaso, até mesmo porque ninguém sabe o que diabos é o acaso... E se o próprio acaso for ele mesmo mais um deus, será em todo caso tão desconhecido quanto Aquele outro. E ainda que permaneçam fiéis ante a maior das tragédias, como os apóstolos a serem pregados nas cruzes, é porque em seu íntimo sabem, de alguma forma, que a morte não é o fim do caminho, mas apenas a passagem de um ambiente ao outro, na grande casa do Cosmos.
Mas e aqueles que não creem? O que lhes resta senão encarar face a face este aparente “grande nada”, o vazio, o buraco negro que suga tudo o que há? Talvez, conforme os estóicos e epicuristas, devam se contentar com o que podem mudar, o que podem decidir, o que podem sentir, no aqui e no agora. E, conforme disse Carl Sagan, de alguma forma se contentarem com viver na memória daqueles que os amam – a vida após a vida – embora não estejam mais aqui para saber...
E, finalmente, aqueles que compreendem a morte mais profundamente, sabendo perfeitamente que ela é ao mesmo tempo um fim e um recomeço, ao mesmo tempo uma enorme mudança e uma fugaz renovação, ao mesmo tempo o arauto do desespero e a promessa da evolução, não há que se ater aos fantasmas das mentes alheias. Não há que se estagnar com o tempo e a vontade nas mãos. Não há que cair na ilusão de que o mundo todo é tão somente isto que vivemos aqui, neste planeta ínfimo na periferia de uma de bilhões e bilhões de galáxias do Cosmos... Somos, sim, seres a viajar por esse universo infinitamente belo, tanto pelo milagre da vida quanto pelo caos da destruição, que no fim apenas permite que a vida se renove e renove, rumo a algum lugar cada vez mais alto na montanha divina, rumo aos galhos ao topo da árvore da vida, onde o Sol pode ser visto em toda a sua glória, e onde tudo o que há é amor a irradiar-se nos mais variados espectros de pura luz.
Aos que tem olhos para ver, restará sempre esta promessa de vida em seus corações. Não de um céu de tédio eterno, mas do trabalho contínuo, do caminhar passo a passo, do navegar em mar revolto e noite fria, mas sempre rumando ao próximo farol.
Perto deste conhecimento, perto desta visão distinta do jogo da vida consigo mesma, do turbilhão de seres e potencialidades a desafiar a entropia cósmica, um mero terremoto, uma pequena enxurrada, é tão significativa quanto à destruição de um ninho de formigas... Embora mesmo a menor das formigas seja, ela também, parte da mesma teia que nos conecta a todo o Cosmos.
E se viver é morrer a cada instante,
Entregamo-nos, então, à eternidade.
Mas se viver é sofrer na escuridão,
Entregamo-nos de corpo e alma à caridade.
(trecho final de poema de Otávio Fossá)
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