Não há fronteiras
Artigo original do Blog Textos para Reflexão
Ainda me lembro da primeira vez que subi ao Platô, uma das montanhas turísticas de Monte Verde, adorável
cidadezinha do sul de Minas Gerais. Além da bela visão das montanhas da Mantiqueira, tive a oportunidade de
colocar um pé no estado de Minas e outro no de São Paulo, visto que a fronteira entre os dois estados passava
exatamente por aquela pedra. Eu talvez fosse muito pequeno na época, ou talvez simplesmente não tenha dado a
importância ao assunto, mas fato é que, em realidade, não havia fronteira alguma ali. A única fronteira estava em
nossa própria mente, na crença de que haviam fronteiras – quando nada mais havia além de vento, pedras e tufos de
grama...
Na época do advento do cristianismo, os primeiros e talvez mais fiéis seguidores dos ensinamentos de Jesus foram
nomeados pelos romanos como gnósticos, embora eles mesmos se intitulassem cristãos. Sabe-se que, segundo o
Evangelho de Tomé – um dos taxados mais tardiamente como apócrifo, e que foi descoberto em Nag Hammadi no século
XX –, o reino de Deus pode ser encontrado debaixo de alguma pedra ou dentre um galho seco partido. Isso nada mais
era do que uma metáfora, certamente bem profunda e além de análises superficiais, que demonstrava que nada poderia
estar efetivamente “fora de Deus”.
Estando Deus em toda parte, a edificação de grandes templos e catedrais não seria de maior valia, para nosso
reencontro com seu reino, do que uma edificação mental, uma guinada de nossa própria consciência na direção do
infinito... A fronteira para o reino de Deus estava em toda parte, e em parte alguma – pois que era essencialmente
um estado da consciência humana.
Para o imperador Constantino, não era interessante que o cristianismo recém instalado em Roma permitisse esse tipo
de religiosidade liberta. Isso ameaçaria a autoridade dos eclesiásticos e, por tabela, a autoridade do próprio
imperador, que no fim das contas era a autoridade por cima dos eclesiásticos. Por razões parecidas, muitas igrejas
têm se mantido pelo dogma de que formam uma comunidade de escolhidos por Deus (do grego ekklesia), e que toda a
autoridade pertence aos eclesiásticos, que falam em nome de Deus – por mais absurdo que isso soe para um cristão
antigo (um gnóstico).
Mas a religiosidade, a religação (do latim religare) as nossas origens – ao Cosmos ou a Deus –, não necessita
desse tipo de intermédio. Muito embora seja perfeitamente compreensível que mentes afins desejem se reunir para
discutir sua própria crença em conjunto (os gnósticos, os místicos judeus, os filósofos gregos, os monges
budistas, todos já tinham essa prática...), essa concepção pode ser facilmente extrapolada quando um dos
religiosos pretende falar em nome dos demais, ou pior, em nome de Deus. Foi dessa forma que nasceu, por exemplo, o
conceito absurdo de guerra santa – uma matança desenfreada em nome de Deus, uma ignorância suprema das leis
cósmicas.
Há muito religiosos que… ainda conseguem ver o reino de Deus em toda parte. Por isso que, embora todos os eclesiásticos sejam religiosos, nem todos os religiosos estão associados a uma
igreja ou doutrina em específico. Há muito religiosos que, tal qual os gnósticos, ainda conseguem ver o reino de
Deus em toda parte. Para estes, não há fronteiras.
Com a radicalização das doutrinas eclesiásticas na época medieval, o racionalismo científico, que já houvera
florescido na Grécia e diversos outras regiões do mundo antigo, renasce em todo o seu esplendor, junto com a arte,
a literatura e os novos ideais de humanismo e liberdade de pensamento. Há muitos racionalistas que, até hoje,
creem piamente que toda religião é um veneno para a mente, e que somente a razão científica deve ditar os rumos de
nossa cultura e sociedades. Eles também se alistaram para uma guerra santa, não em nome de Deus, mas em nome da
Natureza, em nome de uma estranha ideia que mistura ciência, racionalismo, ceticismo e negação radical da
subjetividade... Obviamente, não poderia ter dado certo.
Kierkegaard, filósofo e teólogo dinamarquês, questionava-se se não era possível que sua atividade como observador
puramente racional e objetivo da natureza, ou seja, sua atividade científica – conforme a ciência era erroneamente
interpretada já em sua época –, pudesse limitar o seu potencial como ser humano pleno. Mais recentemente, Paul
Feyerabend, filósofo da ciência austríaco, valeu-se do pensamento de Kierkegaard para sua feroz crítica a
metodologia científica moderna, excessivamente metódica, sem praticamente nenhum espaço para a subjetividade:
“Será que a ciência como a conhecemos hoje, uma ‘busca pela verdade’ no estilo da filosofia tradicional, criará um
monstro? Não será possível que uma abordagem objetiva que desaprova contatos pessoais entre entidades irá
prejudicar as pessoas, torná-las miseráveis, hostis, criando mecanismos moralistas desprovidos de charme e humor?
Eu suspeito de que a resposta para muitas dessas questões seja afirmativa e eu acredito que a reforma das ciências
para torná-las mais anárquicas e mais subjetivas (em um sentido Kierkegaardiano) é urgentemente necessária.”
Feyerabend estava especialmente preocupado com o fato do pensamento existencial, espiritual, filosófico, estar
sendo ignorado pela nova geração de cientistas que emergiu após o fim da Segunda Guerra, em plena era da corrida
nuclear: “O isolamento da filosofia em uma casca ‘profissional’ própria têm trazido consequências desastrosas. A
jovem geração de físicos, os Feynmans, os Schwingers, etc., podem ser brilhantes; eles podem ser mais inteligentes
que seus predecessores, do que Bohr, Einstein, Schrödinger, Boltzmann, Mach e outros. Mas eles são selvagens
não-civilizados, lhes falta a profundidade filosófica – e esse é o erro da própria ideia de profissionalismo que
vocês hoje defendem”. Embora possa ter sido um tanto radical, a mensagem de Feyerabend atingiu um cheio a
Academia, bem em seu ponto fraco e obscuro.
Ocorre que a Academia, ou o grupo de cientistas que nomeou a si mesmos como “escolhidos da Natureza”, nada mais
era do que o outro lado da moeda neste interessante jogo entre as autoridades eclesiásticas e acadêmicas que tem
sido jogado no Ocidente há mais de um século. Da mesma forma que os imperadores de outrora decidiam qual texto
seria sagrado, e qual seria apócrifo, quais religiosos seriam salvos, e quais seriam perseguidos e esquecidos pela
história (que eles próprios escreviam), alguns dos acadêmicos de hoje em dia tem tratado de tornar a ciência – a
observação e o conhecimento da Natureza – uma espécie de ideologia associada à racionalidade e objetividade
extremas. Dessa forma, puderam decidir, por exemplo, que Darwin e não Wallace deveria ser lembrado pela teoria da
evolução (embora sejam co-autores, Wallace era espiritualista); que a ciência ocidental deveria ter preponderância
sobre as outras, que foram chamadas de alternativas ou pseudo-ciências (embora a acupuntura já seja largamente
utilizada no Ocidente, inclusive em animais); que todo e qualquer estudo científico que sugerisse a existência da
alma fosse tratado como algo apócrifo (embora até mesmo Carl Sagan tenha admitido que o estudo com crianças que
lembram vidas passadas seja intrigante).
Obviamente, e felizmente, os acadêmicos são ainda civilizados o suficiente para atacar os de pensamento contrário
apenas no campo das ideias e no escoamento de verbas para pesquisas – ainda não se teve notícia de cientistas
queimando religiosos em fogueiras... O importante é que não se pense a ciência e a religião como áreas
hermeticamente separadas. Assim como Einstein e Bohr foram profundos conhecedores e admiradores de doutrinas
espiritualistas (o deísmo espinosiano e o I Ching, respectivamente), não há nenhum bom motivo para os cientistas
de hoje tratarem da religiosidade como algo apócrifo.
A questão não é se a verdade está no dogma eclesiástico ou no método acadêmico, se está na religião ou na ciência,
na objetividade ou na subjetividade. A verdade é que não sabemos toda a verdade, e talvez jamais saibamos – ou,
ainda que ela nos chegue por algum texto sagrado ou mensagem extraterrestre, não a saibamos interpretar
corretamente.
A única verdade é que o Cosmos é algo muito, muito grande. Que a Natureza jamais nos deixará relaxar. Que ainda
temos muito, muito o que desvendar dentre átomos e quarks, galáxias em agrupamentos inimagináveis, e delicadas e
fluidas engrenagens de pensamento. Seja você um jovem acadêmico, teólogo, artista, filósofo, ou neófito (e, de
certa forma, todos o somos), a verdade é que não há fronteiras neste reino.
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