A Sombra e a Luz

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deldebbio | 19 de fevereiro de 2009


A alternância entre a Sombra e a Luz sem dúvida tem fascinado o homem desde a aurora da humanidade, primeiro na natureza terrestre, depois em sua própria natureza.

Na busca da sua verdadeira identidade nesta terra do exílio, o homem hoje se reconhece sombra por sua densidade corporal e se reconhece a luz “porque é aquele que traz em si o que é maior do que ele”. Este é o ensinamento do Martinista. Mas quantos seres percebem a centelha luminosa que brilha em seu interior? O homem deve necessariamente tomar consciência da essênsia divina em si, se quiser descobrir Deus.


Quer se aperceba disso ou não, o homem é uma chave da Natureza divina e do Universo. Embora Deus se manifeste em suas obras, o homem não pode conhecê-lo perfeitamente em si mesmo, a não ser pela contemplação. Conseqüentemente, o homem tem como futuro tornar-se luz e, como meio, a sabedoria que é a visibilidade de Deus. Essa sabedoria “preside a todos os nascimentos espirituais”, como escreveu Jacob Boehme. Se ele está destinado a se tornar luz é porque seu estado, ou melhor, seus limites o compelem a se elevar para o seu estado primeiro. No mundo manifesto, o homem é limitado por suas próprias esperanças e seus próprios desesperos. Ele não é luz nem trevas, mas uma sombra que tende a se desfazer na medida em que ele se abre para a espiritualidade.

Diz o místico que uma “claridade não luminosa não é percebida”. Os iniciados são atraídos pelos mistérios, ou seja, pela Luz da Verdade, as outras pessoas são atraídas pelas imagens e parábolas, ou seja, pela sombra da Verdade. Essa sombra afeta os pensamentos e os sentimentos, no sentido de que ela é a oposição das virtudes divinas. Por exemplo, a sombra da alegria é a tristeza congelando a vida, como a máscara congela a expressão. Os maus pensamentos são, de algum modo, pensamentos de sombra, onde as virtudes não conseguem se expressar.

O “homem da torrente” é essa claridade não luminosa, porque leva a vida nutrindo-se de pensamentos em grande parte centralizados em sua própria pessoa. Ele tem uma visão incorreta da situação presente e do destino humano, utilizando sua energia e talentos para a finalidade de alimentar sua inquietude. O homem da torrente possui autoridade material, mas não tem a autoridade espiritual, que é o fato de sentir e ouvir a verdadeira Palavra em seu ser. A Palavra divina equilibra a luz e as trevas no corpo do homem, sem o que este seria envenenado pela angústia e aniquilado pelo sofrimento.

A cegueira interior conduz forçosamente às trevas. A vida sempre perde o viço quando não se apoia nos fundamentos divinos. O homem vivencia um inferno passivo quando seus pensamentos não são mais purificados na fonte interior, ou um inferno ativo quando suas paixões o impelem a ações demoníacas.

É importante não confundir o que está oculto com o que está na sombra. A sombra pode ser definida como uma solidão. Somos sós porque nos separamos de Deus. Por extensão, quando nos separemos dos outros homens, freqüentemente é para nos descobrirmos, ou seja, para descobrirmos Deus. A respeito dos mistérios, nosso Venerado Mestre Louis Claude de Saint-Martin dizia que “a origem oculta das coisas é um testemunho de sua eterna e invisível fonte”. Assim, os mistérios são uma chave que aproxima o homem de Deus, enquanto que a sombra é um meio importante para encontrar essa chave. Aliás, tudo que compõe a Criação possui uma sombra, pois “cada coisa deve fazer sua própria revelação”.

Como habitante do mundo, o homem deve sua salvação à misericórdia divina. Estando colocado entre a Divindade e a obscuridade, sua tarefa é espalhar a Verdade para que sejam dissolvidas as sombras que se misturam à Luz. Ele está encarregado de ser um auxiliar de Deus no plano terrestre, para pacificar e aperfeiçoar, ali onde o Divino age através do homem. Consciente, o ser humano tanto tem condições de manifestar grandeza pelo desenvolvimento de suas faculdades nos mais diversos campos, como obscurecer-se na ignorância e na ruína, que são o caminho dos vícios mais odiosos que conduzem às trevas. A inocência infantil irradia todos os elementos benfazejos para a construção de uma vida espiritual, mental e física harmoniosas. Mas esses elementos do bem são com muita freqüência aniquilados por um livre arbítrio e uma vontade que se encontram fechados às leis eternas.

Atravessar caminhos é um estado mental para os homens que ignoram que sua alma é um pensamento de Deus e que, portanto, o destino humano só pode ser espiritual. Em outras palavras, existe um caminho traçado para todos aqueles que sentem o chamado da Verdade, embora não estejam livres de passos em falso e pensamentos negativos. Esses não se desgarram porque se mantêm na estrada real, e só se atrasam devido aos seus erros quando, por exemplo, geram suas angústias e as vivenciam.

No interior do homem, a misericórdia divina se expressa na força que lhe é concedida para poder resistir as fraquezas e às coisas fáceis. Em outras palavras, a Fé o afasta da tentação e suas conseqüencias. Assim como o sangue dissolve e assimila os alimentos, evitando uma intoxicação, assim também essa força, que age sem cessar, decompõe e transforma os pensamentos mais viciosos. Sua eficácia é tanto maior quanto mais prisioneiros do Ego sejam os pensamentos. Essa marca divina, esse princípio universal, é uma fonte da vida eterna que une Deus e o homem numa aliança sagrada ou, como escreve nosso venerado Mestre Louis Claude de Sant-Martin: “Deus e o homem podem se conhecer na luz”. Essa aliança existe em todos os homens, seja qual for seu nível de consciência. E por isso que as sombras turvam o pensamento, mas não podem cristalizá-lo numa forma tenebrosa. É fácil observar sua dissipação e até mesmo seu desaparecimento quando preces e meditações são expressadas em locais tornados sagrados pelo verdadeiro Desejo. O espargimento do sopro divino é então favorecido e banha nossos pensamentos. Estes respiram a pureza ao se eriquecerem com as virtudes mantidas secretas pela mente. Os raios de luz ficam então quase que deslumbrar a consciência.

O verdadeiro Desejo se reveste de uma importância particular para o Martinista. Ele é, na verdade, a passagem obrigatória do cavaleiro para sua reintegração. A luz que não pode ser compreendida, a não ser pela revelação, está no final do caminho. A sombra se revela então sob uma nova forma. Ela não aparece mais como barreira desprezível, e sim como um meio de compreender os homens, e melhor entender suas dúvidas e infelicidade. A angústia talvez não seja mais do que a “oposição entre o desejo tenebroso e o desejo luminoso” enquanto a natureza divina não tiver sido compreendida como uma entidade viva no homem.

A consciência humana é como uma árvore que cresce simultaneamente por obra de suas raizes subterrâneas e também por obra das folhas que absorvem a luz, uma fazendo sombra às outras; o conjunto, entretanto, desenvolve a harmonia. Analogamente, a adversidade e a riqueza dos pensamentos e experiências constituem o cadinho de evolução da humanidade. Entre sua própria consciência e a dos outros, surgem no homem menos zonas de sombra do que entre seu corpo físico e de outrem, embora estejamos todos infundidos com a Verdade divina. Na consciência, a sombra e a luz parecem não se excluir. Pelo contrário, parecem se misturar para preparar a expanção de um sentimento misterioso: o Sagrado.

O Sagrado está em estado latente em todo o ser humano. Tomas consciência e também fazer tomar consciência é ser esclarecido pelos valores morais universais que não podem nem devem ser ignorados. É, acima de tudo, o meio de aproximar os homens, para que estes se aproximem de Deus. Dedicar-se às consciências, este é o dever exterior do Martinista, desde que ee saiba que seu dever interior é orar.

Quando a luz e sombra se defrontam em seu interior, o homem vive momentos dramáticos, pois existe a incomunicabilidade com Deus, ou seja, a perda total da língua original que o liga a Ele. Os pontos de referência humanos são a ilusão, a idolatria e as iniqüidades. Mas, se pode acontecer do homem não ser capaz de se comunicar com o Divino, o mesmo acontece com o Divino em relação ao Homem. Constantemente um raio de sabedoria penetra na sombra que está no ser, infundindo seus pensamentos e ações. Esse raio luminoso é sentido pelo homem da torrente através de sua densidade corporal e mental. É no seu exterior, entretanto, que ele procura uma correspondência que o ajude a compreender. Neste situação é que acontece de um homem da torrente prestar atenção a um Martinista. Essa ressonância existe porque o Desejo se instala ou se expande no coração do místico.

Em busca da sabedoria, o Martinista tem condições de captar a oposição construtiva entre luz e sombra pela contemplação de sua própria dualidade. O desejo de conhecer Deus torna-se o desejo de servir a Deus, na medida em que ele descobre o Ser Supremo e Seu amor pelo homem. Desse forma, fica predisposto a compreender os homens mais desfavorecidos.

O fardo do Martinista é difícil de carregar, mas seu ardor recebe o auxílio da Mão Divina, unindo sem cessar a vontade humana ao Desejo profundo. Esse Desejo faz do verdadeiro servidor de Deus um gerador de energia, cuja missão é espargir luz para melhor dissolver a angústia e a dúvida que o cercam, transmutando em outros a energia obscura em energia luminosa.

Toda a obra do Martinista se encontra na maneira de administrar os assuntos de Deus e não legislar em Seu lugar, pois em conseqüência disto o homem paga hoje um pesado tributo. Por isso, ele não deve se preocupar com seu progresso na senda divina, nem limitar-se na ação ao seu nível de consciência, pois a luz se harmoniza com seu ser. A única necessidade assume a forma do Desejo de serviço, ao longo de toda sua evolução.

O estudante Martinista desenvolve suas virtudes na sombra, ou seja, sobre uma base da mesma natureza que a dele, pois seus pensamentos ainda estão alterados pelas nuvens da ignorância, a despeito de uma vontade serena e uma esperança viva. Sua alma deve ser reanimada pela iniciação e forjada pela experiência.

O homem de desejo a luz velada. Ele sai da sombra e vive na claridade, tendo descoberto o fogo da virtude que o harmoniza e lhe confere a missão de mostrar Deus no coração dos outros homens.

O novo homem é o pensamento de Deus. Ele está na luz. O reino de seu amor e de sua ação ali se encontra doravante, tendo ele cessado de acreditar na barreira imaginária da consciência dos homens. Suas convicções mentais deram lugar a revelação e Deus se expressa através de suas palavras.

Assim, ao tornar-se um “obreiro” de Deus, o Martinista prepara a reintegração de seus semelhantes e participa da elevação de outras criaturas viventes. Sua menssagem não é simplismente fazer sentir que a luz está no homem? Jacob Boehme disse que a luz é “o símbolo da expansão de um ser por sua elevação, enquanto que a obscuridade simboliza o estado depressivo da ansiedade e de seu rebaixamento”.

Se toda luz pressupõe uma sombra, não há qualquer dúvida de que é a sombra que deve servir à luz e não o inverso. O homem não poderá se desgarrar se seguir com o olhar interior o raio que une sua sombra com a claridade, o qual ele é suscetível de ver em seus momentos de meditação e elevação espiritual. Em harmonia consigo mesmo, ele não pode recusar a Palavra luminosa. Ele tem tudo para reconhecê-la, não como um possível substituto para os seus sentidos, mas como um princípio de sua natureza. A visão ensombrada, velada, dos sentidos não é o intervalo entre a cegueira das Trevas e o olhar luminoso para o Absoluto? Neste sentido, lembremo-nos sempre das palavras de São João: “A luz brilhou nas trevas, mas as trevas não a compreenderam”.


Texto da revista “O Pentáculo da Ordem Tradicional Martinista, ano IV nº IV, achado no blog do Mathayus